VII
A VERDADE
Tendo tudo preparado, Marcelo viajou na quarta-feira de manhã; procurando acalmar-se, dirigiu com cautela. Acalentava a esperança de confirmar o contrário das suspeitas e que Caio e Cidinha nem sequer fossem parentes.
Chegou às dez horas e procurou um hotel discreto e simples; a cidade modificara, crescera e modernizara, lembrando pouco da cidade de tempos atrás. No hotel, aguardou no quarto a hora do almoço, as onze e trinta minutos desceu ao refeitório, alimentou-se pouco e, logo após, foi ao hospital.
Este também modificara fora aumentado e embelezado. Na recepção, teve conhecimento de que as Irmãs de Caridade trabalhavam ali como outrora. Pediu para ser atendido pela Irmã Superiora. Foi conduzido a uma pequena sala e convidado a sentarse e esperar, que a Irmã logo viria. Marcelo sentiu-se mais nervoso ainda, seu coração batia forte.
Acompanhamos Antônia e eu, Marcelo passo a passo.Ele estava com vontade de ir embora e não tentar descobrir nada e deixar tudo como estava. Achava que todas as suspeitas eram sem fundamento, parecendo-lhe impossível uma coincidência tão grande, a de os garotos serem irmãos.
Uma Irmã desencarnada veio cumprimentar-nos. Após as apresentações Antônia explicou o porquê de nossa visita, resumindo sua história.
“Nunca vi nada igual, disse-nos gentilmente. Temos arquivos de longa data com óbitos, porém, não é sempre que nossa laboriosa Irmã Superiora deixa estranhos vê-los. Prometo ajudá-los.”
Sorriu encantadoramente,tudo nela demonstrava bondade e dedicação.Cinqüenta e um anos serviu encarnada ao próximo, como enfermeira. Ao ter o corpo físico morto, após um período de descanso e aprendizado, voltou ao hospital e serve em nome de Jesus a todos os necessitados do corpo e espírito, sempre com amor e carinho.
A Irmã Superiora entrou, cumprimentou gentilmente
Marcelo, que explicou desajeitado:
— Irmã, adotei uma criança neste hospital há precisamente dezenove anos. Como surgiu um problema, necessito saber o nome da mãe dela que faleceu no parto. É possível?
— Não sei, tanto tempo.
— Por favor, Irmã, é importante.
Marcelo agitou-se, mudando de posição na cadeira, pensou aflito: “Que faria se não fosse possível? Como ficar na dúvida?!”.
— Nossos arquivos estão no depósito e não sei se poderemos achar o que quer. Estamos com falta de pessoal e não posso dispor de ninguém para esta procura que necessita de tempo.
— Eu tenho tempo e posso procurar. Por favor, não quero incomodar, é só mostrar-me o lugar e dar sua permissão.
— Não costumamos deixar estranhos entrar lá. Senhor...
Marcelo queira mostrar seus documentos.
— Oh, sim! Aqui estão.
A Irmã examinou-os e nossa amiga desencarnada intuiua a nosso favor, entregou os documentos a Marcelo e disse para nossa tranqüilidade:
— Tudo certo. Deve ser importante esta pesquisa para o senhor, vou permitir. Pedirei a uma secretária para mostrarlhe o caminho.
Marcelo acompanhou uma mocinha, atravessaram o hospital, chegando aos fundos, entraram num corredor grande com algumas salas fechadas. Na última, a moça abriu, acendeu a luz e explicou:
— É aqui, senhor. Por favor, não bagunce mais do que já esta. Os papéis são empacotados pelo ano.
Procure a data marcada na etiqueta, abra-a e achará o que necessita; após guarde-a com achou, certo? O senhor está com sorte, a Irmã Superiora não deixa estranhos entrar aqui. A maioria destes papéis vão logo para o fogo, porque iremos precisar desta sala e não teremos onde guardá-los. Agora vou deixá-lo, o senhor, por favor, não vá a outras salas. Quando acabar, vá à recepção.
Saiu, Marcelo ficou só, a sala fechada tinha o ar abafado cheirava pó.
“É melhor procurar logo, resmungou.”
Tirando pacotes uns de cima dos outros, encontrou o ano que procurava. Abriu o pacote, os papéis estavam mais ou menos em ordem de datas. Separando-os cuidadosamente, encontrou a ficha que era tão importante para nós.
Marcelo leu emocionado:
“Antônia S.C. morreu de parto”.
Atendida pelo médico...
“A menina órfã, branca, sadia, foi entregue pela Irmã Maria J.O. para o casal residente nesta cidade: o Sr. e Sra..”
Marcelo leu várias vezes, O nome de Antônia, a mãe de Caio, ali estava. Nada deixava dúvidas. Data certa, nomes dos sogros, a Irmã Maria. Sentou-se e chorou. Acalmei-o e confortei-o.
“Marcelo seja forte! Acharão um modo de separá-los sem causar muitos problemas. São jovens, esquecerão fácil.”
“Será um escândalo! - responde-me em pensamento.
Como agüentar os falatórios?”
“Marcelo pense em como resolver este problema sem que este assunto venha a público.”
Marcelo leu mais uma vez a ficha e cuidadosamente pôs tudo no lugar. Apagou a luz, fechou a sala e foi para a recepção, entregou a chave para a moça que o conduziu e esta he perguntou alegre:
— Achou o que queria senhor?
— Sim, gostaria de agradecer à Irmã.
Foi conduzido novamente à sala em que estivera antes. A mocinha disse para que aguardasse que a Irmã estava ocupada, mas que viria em seguida.
Marcelo, enquanto aguardava, preencheu um cheque com uma quantia razoável. A Irmã demorou; ao chegar, pediu desculpas.
— Temos muito trabalho, o hospital está lotado.
— Irmã, agradeço de coração por ter permitido que pesquisasse em seus arquivos. Se me permite, quero deixar meu donativo aos seus pobres, que devem ser muitos.
Agradeço-lhe, de fato são muitos os necessitados. Nosso hospital, como tantos outros, atravessa uma crise financeira e necessitamos de tudo. Sinto-o triste, Sr. Marcelo, o que encontrou é desagradável?
— Infelizmente, sim. Ore por mim, Irmã, o que tenha a fazer não será fácil.
Despediu-se da Irmã, saiu do hospital, sentou-se num banco do Jardim na frente do prédio. Eram dezessete horas, Marcelo estava desanimado e triste, resolveu pernoitar na cidade e ir embora só no dia seguinte.
Vendo minha amiga Antônia preocupada, animei-a.
— Antônia, o mais difícil conseguimos, descobriram; o resto será mais simples.
— Porém, não fácil. Como sentirão meus filhos?
Sofrerão? A errarmos, não pensamos que os erros nos acompanham e um dia enfrentaremos seus frutos.
— Marcelo e Paulo são pessoas responsáveis e com nossa ajuda, acharão um modo mais fácil de enfrentar a situação.
Marcelo foi para o hotel, trancou-se em seu quarto e ficou a pensar, tentando achar uma maneira de resolver a situação, evitando maiores sofrimentos.
No dia seguinte, partiu cedo, fez uma viagem calma, chegando, foi para casa, deixando para o outro dia sua conversa com Paulo. Tentou aparentar calma não deixando perceber no seu lar, sua preocupação. No outro dia, em vez de ir para seu escritório, rumou para o do amigo, chegando junto com ele. Paulo, logo que o viu, teve a certeza de que Marcelo não trazia boa notícia.
Após se cumprimentarem, foram para a sala de Paulo que recomendou para que não os perturbassem.
— Tudo confirmado! Tudo! São irmãos! - falou Marcelo em desabafo e contou tudo em detalhes ao amigo.
— Que coisa, meu Deus! Como é possível dois irmãos virem a namorar?
— Os garotos não sabem, nem desconfiam que são adotivos! Paulo, quanto mais penso, mais acho que foi Deus que me fez vir aqui e contar tudo a você, fiz sem querer, porque julgava nunca fazê-lo a ninguém. Tenho até arrepios, se não contasse... Bem, agora temos a confirmação, só nós dois sabemos.
— Temos que pensar em separá-los e já.
— Poderíamos nós dois fingir que brigamos e exigir que o dois se separem, faríamos com que nos obedecessem.
— Acha mesmo que dá certo? Há tempos que torcemos pelo namoro, todos sabem que fazemos gosto e alegramos com a possível união e, de repente, ficamos contra! Depois, conheço os jovens, não iriam nos obedecer, só faríamos piorar a situação, namorariam escondidos. E as nossas esposas? Certamente se aliariam a eles contra nós. Depois,
Marcelo, amigos há tanto tempo, como explicar uma briga entre nós? Por que não privarmos da nossa amizade agora mais fortalecida?
— Tem razão, Paulo, a idéia é ruim. Não devemos fugir da verdade. Não se resolve um problema criando outros. Só a verdade dará compreensão a uma separação.
— Contar tudo? Seria um escândalo!
— Se seria por meses a sociedade comentaria o fato com maldade. Helena e Ofélia seriam as que mais sofreriam, são tão sensíveis... E minha Cidinha, tão frágil e mimada, tão orgulhosa dos pais, que fará? Tenho medo. Paulo pensei muito, acho que nestas últimas horas é só o que tenho feito.
Não podemos expor nossos segredos familiares ao público.Mesmo contando só para a família são muitas as pessoas sabendo e pode acabar se espalhando. Vivemos tão bem, você com seus pequenos problemas, tem a família que o respeita e admira. Helena e eu nos amamos e tudo o que temos é Cidinha. Como reagirá esta inocentinha diante dos comentários? É adotiva!
Namorou o próprio irmão! Não,
Paulo, não podemos arriscar.
— Não exagera Marcelo? O assunto pode ficar só na família.
— Como ter certeza? Acredito que, se Cidinha souber disto, irá chorar muito e, conhecendo-a, irá contar às amigas. Helena não me perdoaria por ter contado nosso segredo. E tem Ofélia, como reagirá quando souber que foi enganada e que Caio não foi abandonado, mas é fruto de uma traição? Continuaria amando-o como filho? Ela já sofreu tanto. Devemos pensar também em Sérgio e Carla, dois adolescentes, sofreram muito vendo a mãe sofrer. E como reagiriam eles com você, continuaria sendo o pai de que tanto se orgulham?
— Por favor, Marcelo, pare! Que sugere?
— Contar somente ao Caio.
— Quê?!
— Paulo, Caio é responsável, bom e equilibrado. Amo-o muito, quero-o como meu filho, sabe disto. Se contarmos a ele, se você contar a ele, tenho a certeza de que guardará segredo, terminará o namoro com Cidinha e pronto.
— Será o sacrificado.
— Dos males, o menor. Em vez de todos sofrerem, só ele passaria por momentos difíceis, depois ele é seu filho, não é como Cidinha que nada tem de nós. Caio é maduro, entenderá.
— Sofrerá Marcelo, meu menino sofrerá.
— Você poderá agradá-lo, poderá dar-lhe viagens, carros, algo que ele deseja. Caio é um bom moço, compreenderá. Que prefere Paulo, ele ou todos?
— Você tem razão. Separá-los, não conseguiremos.
Mentir não é solução, que mentira aceitariam? Não se esconde a verdade por muito tempo. Contar a um deles é o mais acertado. Revelar a Cidinha é como contar a todos.
Depois, Marcelo, não posso nem pensar em dar mais sofrimentos a Ofélia, inocente naquela cadeira de rodas.
Resta-nos Caio...
— Fale com ele hoje mesmo. Não adie, perderá a coragem. Força, amigo, faça o que tem que ser feito.
— Farei Marcelo, solução tomada tem que ser executada.
Falarei com ele hoje à tarde.
Despediram-se, Marcelo saiu e Paulo ficou triste, nunca sentira tanto remorso. Pensar que por seu erro, Caio, o seu menino sofreria. Como ele reagiria? Se ficasse revoltado?
Se não gostar mais dele?
“Meu Deus, ajuda-me! - exclamou alto.”
E com sinceridade pôs-se a orar.
Paulo não foi almoçar, esperou o filho com ansiedade.
Caio chegou logo após as treze horas, recebeu o recado de que o pai queria vê-lo, rumou para a sala dele.
— Oi, papai, tudo bem?
— Entra filho, fecha a porta, tranque-a, por favor.
— Algum problema?
— Escuta-me...
Paulo resolvera não fazer rodeios para contar, não queria perder a coragem, antes deu ordens para não serem incomodados. Olhou para Caio que estava tranqüilo, pronto para ouvi-lo como sempre. Sentou-se em sua frente.
— Marcelo esteve aqui na segunda-feira e contou-me um segredo e autorizou-me a contar a você. Quero filho, que guarde o que vai ouvir.
Caio concordou com a cabeça, jamais vira o pai tão sério, este fato fez com que prestasse muita atenção nele, sentiu que o assunto era realmente sério. Paulo contou a parte mais fácil, tudo o que Marcelo lhe contara.
— Coitadinha da Cidinha! - comentou Caio -, ela não pode saber disto, sofreria muito. Mas, isto não faz diferença, não sei por que o Sr. Marcelo contou-lhe isto.
— Se fosse com você Caio, sofreria?
— Eu?! - Caio observou o pai estava nervoso, suava e empalidecera. Estranhou a pergunta, conhecendo o pai,entendera que a indagação não fora em vão. E perguntou em voz baixa: — por quê?
— Perdoa-me, filho, sou um miserável, um bandido.
Somente eu que deveria sofrer só eu! O segredo não termina aí. Tenho o meu.
Caio não ousou falar, arregalou os olhos e os fixou no pai Paulo ia parar a narrativa, demos forças a ele, e continuou. Contou desde a época em que namorava Ofélia, da oposição dos pais, do envolvimento com Antônia, do nascimento dele, da descoberta de Marcelo. Falou sem parar, sem interromper e finalizou:
— Você compreende filho? São irmãos! Você e Cidinha são irmãos. Caio! Filho! Por favor, fale comigo! Caio nada disse, ficou parado olhando o pai, pela sua mente martelava as palavras do pai: “São irmãos!” sentiu vontade de chorar, mas as lágrimas não caíram. Paulo, preocupado, sacudiu-o pelo braço.
— Caio filho, por favor! Xinga-me, eu mereço, mas, não fique assim. Meu Deus! Caio!
— Por que conosco? - indagou e as lágrimas então rolaram pelas faces, encostou a cabeça nos ombros do pai, que amorosamente abraçou-o.
Paulo pensou: “Marcelo tem razão, Caio é especial.”.
— Amo você, filho, perdoa-me. Quem poderá dizer-nos o porquê disto tudo? Não sei responder-lhe. Este sofrimento passará, Caio você esquecerá. Olhe, - disse demonstrando alegria —, você fará uma viagem, Europa, África, Oriente, quer? Distrairá e tudo isto logo será só a sombra de um pedaço difícil. Nada deve fazer diferença. Você é nosso, é meu, somos, Ofélia e eu, seus pais.
— Tudo bem, papai, estou bem, disse enxugando o rosto e levantando-se, dispensa-me do trabalho?
— Tudo o que você quiser. Caio você não falará nada a ninguém, não é? Escolhemos você para contar, porque lhe temos confiança. Se todos viessem, a saber, seria um escândalo, todos sofreriam e, como você disse Cidinha nunca deverá saber. Sofre, enquanto só eu deveria sofrer.
— O Sr. não é tão culpado assim. Não se amargure. Estou bem. Não posso dizer-lhe que estou feliz, mas passará. Não, papai, não direi nada a ninguém. Tem minha palavra.
— Obrigado.
Caio abriu a porta.
— Aonde vai filho?
— Pensar por aí, andar um pouco. Não se preocupe.
— Caio amo você.
— Sei.
Caio saiu e Paulo ficou olhando pelo vitrô. Viu o filho chegar no pátio andando lento, cabeça baixa, pegar seu carro e sair.
— Meu Deus, ajude meu menino. Será que fiz bem em deixá-lo sair sozinho? Caio está sofrendo. Preferiria que tivesse xingado, gritado, eu merecia. Sofre e quer ficar sozinho.
Deixamos Paulo e acompanhamos Caio. Antônia estava quieta, fortalecia em oração. As palavras de Paulo faziam eco em seus pensamentos: “Nossos erros nos acompanham, um dia sofremos por eles.” Caio não era seu, não tinha direito sobre ele, amava-o, embora tardiamente e vê-lo sofrer era seu castigo.
Caio dirigiu com cuidado, afastou-se do escritório, ao passar por uma praia parou o carro e desceu, sentou-se num banco do calçadão. Embora fosse sexta-feira à tarde, tinha pouco movimento. O tempo estava nublado e ventava. Caio olhou o mar, as ondas agitavam-se, dando um espetáculo de força e beleza.
Começou a pensar em tudo o que o pai lhe dissera.
— Caio sofre, Antônio Carlos, disse-me Antônia.
— A flor cai para o fruto aparecer e ser útil, minha amiga. O sofrimento amadurece-nos, faz tantas vezes cair à flor da ilusão, para dar lugar ao fruto de que realmente necessitamos. Caio é valente, sofre, mas não está revoltado, não teve nenhum pensamento de revolta.
— Sofre, mas, está tranqüilo...
— Perdoar, não querer mal a ninguém dá tranqüilidade, Antônia. O perdão é harmonia, paz e tranqüilidade.
— Ele nem perguntou por mim, não pensa em mim.
— Antônia, não exija o que não deu. Confortemo-lo somente.
Médium: Vera Lúcia M. Carvalho
Espírito: Antônio Carlos
Deus proteja a todos...
abçs,
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