sexta-feira

A Casa do Escritor XII


VIII - NO UMBRAL

Foram inúmeras as excursões que fizemos ao Umbral, em grupo ou sozinhos, com a finalidade de auxiliar, e também colecionar histórias que iríamos escrever nas aulas de redação.

Depois de tanto tempo desencarnada, acostumei-me com o Umbral, não tinha mais medo e nem me parecia um lugar horrível como achei nas primeiras vezes que o vi. O medo não tem razão de ser quando entendemos que lá estão nossos irmãos. É um lugar feio, é uma conseqüência da vivência errada do ser humano. E, pelas minhas recordações, já tinha sido meu lar provisório em existências anteriores.

Conversas com grupos são difíceis. Ou eles atacam ou querem que você faça parte da equipe deles. Assim, nós nos dirigíamos aos isolados ou agrupados pelo sofrimento. Chegávamos com educação e oferecíamos ajuda de modo sutil. Por exemplo:

- Você deseja que o ajude a sentar aqui? Quer água? Dê sua mão para sair daí.

Porque, senão, querem logo coisas impossíveis: que os ajudemos a se vingar, a ir perto dos encarnados, a se tornarem fortes para serem maiores, etc. Mas encontramos sempre os carentes de ajuda e dificilmente, nestas excursões, não voltávamos com muitos socorridos que levávamos ao Posto de Socorro mais próximo.

Quando sozinha, sempre dei preferência aos que me pareciam sofredores e mais humildes. Deles aproximava-me e começava a conversar, facilmente lia seus pensamentos e ficava sabendo da vida deles. Isto não era feito só pela história, mas também para ajudar. Como uma vez em que encontrei uma mocinha presa numa caverna. Tirei-a de lá e fomos sentar em uma pedra a uma pequena distância do lugar
em que estava presa.

- Por que estava presa? Não quer me falar de você? - disse, mostrando-lhe amizade e dando da água fluidificada que trazia comigo. Tomou a água com a ânsia dos sedentos, me olhou demoradamente e indagou:

- Quem é você? Tirou-me da caverna, não teme meu carrasco?

Falava bem, mostrando ser instruída. Estava com os cabelos desalinhados,armados, que lhe vinham até o ombro. Magra e com as roupas em farrapos. Tinha alguns machucados.

- Não tenho medo. Deixe-me passar esta água em seus ferimentos.

Ela deixou, submissa. Passei e, com a força da minha mente, fui curando-a.

- Puxa! Você é espetacular! Está me curando!

Quase todos seus ferimentos fecharam.

- Você não quer conversar comigo?

- Desencarnei há doze anos, aos trinta e sete anos. Logo que deixei o corpo morto, este carrasco me pegou e tem me prendido. É horrível!

- Que fez a ele para mantê-la assim? - indaguei.

-Nada de mais.Quando encarnados fomos amantes,mas ele era casado. Resolvi deixá-lo, ele não se conformou, deu para beber. Culpa-me por muitas coisas ruins que lhe aconteceram. Ama-me e odeia-me, prendeu-me por ciúmes e por não amá-lo.

Bem, se eu não tivesse lido seus pensamentos e soubesse só uma parte da história, a que ela me contou, pensaria ser este fato algo tremendamente injusto. Mas, por aqui, não há injustiça.

Socorristas estão sempre pelo Umbral, socorrendo os que estão prontos a vibrar diferente.

A história que li nos pensamentos dela foi outra. Ela era volúvel e má, acabou conquistando um homem casado, bom esposo e ótimo pai. Acabou com tudo que ele tinha financeiramente e queria que ele abandonasse a família. Ele não quis e largou dela.

Ela planejou se vingar. Até que um dia conseguiu envenenar a água da família dele. A
caçulinha de três anos desencarnou envenenada. Outra filha de cinco anos ficou com a
laringe e a língua danificadas, quase não conseguiu falar mais. Ele, a esposa e outro filho sofreram pequenas intoxicações. Desconfiaram dela, mas não tiveram como
provar.

Sua esposa o acusou por isto e foi embora com os dois filhos para a casa de seus pais. Ele pôs-se a beber e virou um farrapo humano. Quis voltar para ela, que não o quis, ele não tinha mais dinheiro. Para ter dinheiro, foi roubar e acabou preso, desencarnou na prisão. Ela ainda cometeu muitos outros erros. Ele, o carrasco, como o chamava, esperou que ela desencarnasse para vingar-se.

- Você não contou toda sua história - disse-lhe. - Não lhe pesa na consciência a morte de um inocente? Por que envenenou a água da família dele?

- Como sabe disto? É bruxa? Lê o pensamento? Está aqui para me acusar?

Levantou-se e respondeu enérgica, deixou cair a máscara de humildade. Respondi com calma:

- Não, só tento ajudá-la. Mas, para que possa auxiliá-la, deve arrepender-se dos seus erros e repará-los.

- Está louca? Nunca reparei nada. Fiz e está feito! Mereceram! Não quero conselhos. Você me é desagradável. Odeio você! Odeio todos!

Saiu correndo. Não fui atrás. O Umbral por enquanto era o melhor lar para ela.Talvez seu carrasco não mais a encontrasse. Ele também necessitaria reconhecer sua parte na culpa, traiu a esposa, uniu-se a quem não prestava. Também deveria perdoar e tentar reparar sua falta com os membros de sua família. Ela era fingida, queria piedade sem mudar sua forma de pensar. Espíritos assim num local de socorro só aprontam confusões.

Por isso os socorristas do Umbral têm que saber a quem socorrer. Uma outra vez, vi um senhor não muito velho, mas com os cabelos quase todos grisalhos. Estava sujo e com as roupas em farrapos. Usava uma bengala e arrastava a perna esquerda, estava inchadíssima e cheia de feridas.

- Bom dia! Como vai o senhor? - indaguei gentilmente.

Ele parou, sentou-se numa pedra e me convidou com a cabeça a fazer o mesmo e respondeu:

- Bom dia! Estou bem mal. A perna me dói horrivelmente. Tinha a ferida quando encarnado e agora, mesmo com meu corpo morto, ainda sofro com ela.

- Por que a tem assim, ferida e inchada? - indaguei.

- Porque Deus assim quer.

Enquanto falava, li seus pensamentos. Vi que ele desde jovem, sadio, esmolava. Fingia-se de doente, enfaixava a perna para dar pena às pessoas. Muitas vezes, chegou a cortar ele mesmo a perna para que os ferimentos fossem autênticos. Desencarnou devido a estes ferimentos que infeccionaram. Quando viu que eu o observava, deixou de ser educado.

- Quem é você, minha jovem? Alguma boboca que vem me ! dar sermões?

Dizer que devo perdoar, pedir perdão?Não faço nada disto! Nada tenho a pedir perdão.

- Nem por pedir esmolas fingindo-se doente?

- Ora, ora! As pessoas me deram esmolas porque quiseram.

A perna é minha e uso-a como quero. Pedia esmolas em nome de Deus.

E cadê Ele?

Levantou-se e com dificuldade foi andando e arrastando a perna. Levantei-me também para tentar dialogar com ele.

- Vê se não me amola!

Cuspiu-me. Foi andando blasfemando, dizendo que nada fizera de errado.

Achando que no momento era inútil tentar ajudá-lo, voltei, deixando-o ir não sei para onde. Devo explicar que a cuspida que ele me deu não me atingiu. Depois que aprendemos,estudamos como viver no Plano Espiritual,objetos de irmãos com vibrações inferiores não nos atingem.

- Ai... Ai...

Escutei um dia em uma das minhas visitas pelo Umbral. Parei para ver de onde vinham tão doloridos ais. Achei. Vinham de uma lama. Deitado no barro um espírito gemia tristemente. Peguei-o pela mão e retirei-o da lama. Vi que se tratava de uma mulher, estava nua, toda suja, cheirando mal.

- Não me olhe, estou sem roupa - disse ela com dificuldade.

Tirei da minha mochila um lençol e enrolei-a. Todas as vezes que íamos ao Umbral, levávamos nossa mochila nas costas. Nela, alguns apetrechos que sempre utilizamos, como lençóis, água, alimentos, lanternas, cordas, etc.

- Tão limpo! Sujou-o todo.

- Não faz mal. Quer água?

- Limpa? Quero sim.

Peguei a água e joguei um pouco sobre seu rosto e mãos limpando-os um pouco, depois dei para que bebesse. Bebeu com avidez, após me entregou o cantil e tentou sorrir, mas acabou fazendo uma careta.

- Obrigada!

- Por que você está aqui? Você não lembra de Deus? De orar?

- Não senhora. Não posso orar, sou pecadora. Meu lugar é na lama. Acho que devo voltar.

- Espere um pouco. Converse primeiro comigo.

- A senhora não se importa? Sou pecadora!

- Não me importo. Está com fome? Coma este pão. Ofereci-lhe um pão que pegou depressa e pôs-se a comê-lo.

Coloquei minha mão nas suas costas e ajudei-a, sem que percebesse, a andar até uma pedra para que pudéssemos sentar. Enquanto comia, li seus pensamentos. Quando acabou de comer, agradeceu novamente.

- Não quer me contar o que houve com você? - indaguei.

Olhou-me tristemente, agora mais refeita, e falou:

- Era adolescente quando comecei a namorar e fui para cama com ele. Mas ele não queria nada sério comigo. Foi embora, arrumei outro, mais outro. Meu pai descobriu e me expulsou de casa dizendo:

"Vai embora maldita! Vai para a lama que é seu lugar."

Temi sua ira e pedi: "Pai, pelo Amor de Deus, não me expulse!"

"Não pronuncie o nome de Deus. Você não pode, não deve, é impura demais."

Fui para a prostituição. Meu pai logo veio a falecer de desgosto. Então, nunca mais rezei ou falei o nome deste aí que me perguntou.

- Deus?

- Sim, não sou digna e, como meu pai falou, vim para a lama.

Penso que aqui é o meu lugar.

- Não se arrependeu do que fez?

- Arrepender como?

- Se tivesse que voltar atrás, agiria diferente?

-Não sei... Não sei... Que fiz de errado? Cada um não nasce com seu destino
marcado?

Estava sendo sincera, acreditava que tinha nascido para ser uma prostituta. O que não é verdade. Ninguém reencarna para errar.

Apiedei-me.

- Venha comigo. Você irá aprender muitas coisas. Por exemplo, que Deus é Amor, quer bem a todos seus filhos. Você é filha Dele. Não se envergonhe em pronunciar Seu nome. Orar fará bem a você. Não, minha irmã, a lama não é lugar para ninguém. Vem comigo!

- Será que devo mesmo? Meu pai ficará zangado.

- Não, seu pai não ficará. Você necessita de auxílio. Levei-a para um Posto de Socorro perto, eu mesma a limpei, cortei seu cabelo, suas unhas, alimentei-a e a deixei dormindo.

Fui muitas vezes visitá-la. Era obediente, mas no começo, mesmo gostando demais de ficar no Posto, queria voltar para a lama que dizia ser seu lugar. Foi com dificuldade que pronunciou o nome de Deus e reaprendeu a orar. Muito tem que aprender.

Foi com alegria que um dia, ao visitá-la, encontrei-a ajudando na limpeza. Muitos fatos vemos no Umbral que nos comovem, mas nem sempre a aparência de mártir é real. Muitos presos soltamos e em vez de nos agradecer eles nos odiaram e disseram blasfêmias.

Quando vemos escravos, a vontade que dá é de soltá-los, mas são escravos por afinidades com seus algozes. Soltos, mostram a revolta e querem que os ajudemos a vingarem-se. Sabemos que estes, infelizmente, são os mais necessitados, mas pouco podemos fazer. Levar espíritos revoltados para um socorro é imprudente. Só se pode dar auxílio aos que querem ser auxiliados.

Mas, mesmo se não podemos socorrê-los, ao conversarmos, e darmos conselhos, lançamos uma semente e quem sabe esta semente um dia florescerá como arrependimento e vontade de mudar.

O umbral nos leva a meditar na imensa bondade do Pai que nos deu um local provisório para morar. Aprendi a amar o Umbral e tudo que há nele, especialmente meus irmãos.


Patrícia / Espírito
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho / médium.
bjs,soninha


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