quinta-feira

O Voo da Gaivota XIX


O Vôo da Gaivota

Elisa me acompanhou até outro jardim, que fica na frente do hospital. É um recanto mais bonito,cheio de flores coloridas e palmeiras frondosas. Ali muitos internos passeiam em horário de lazer,por ser um lugar agradável. Minha amiga convidou-me para sentar e falou - Patrícia, tenho, na espiritualidade, trabalhado em muitos lugares, entrando em contato com muitos trabalhadores e socorridos. Aprendi que aquele que ajuda, trabalha, está se exercitando no bem para que, pelo hábito, possa ter melhor disposição na conquista de sua evolução.

No meu convívio com você e com os integrantes do Centro Espírita, percebi que pode haver diferença. Quando Walter e eu estávamos sendo amparados, em nenhum momento me senti necessitada, como aquela que estava sendo ajudada. Pelo contrário, todos da equipe realizaram o socorro como se estivessem fazendo algo para eles mesmos, com naturalidade e atitudes rotineiras. E eles não estavam lidando com desencarnados perturbados comuns, mas sim com espíritos trevosos e um mago maléfico ou um satanás, se assim podem-se designar Natan e sua equipe. Você pode me explicar o estado espiritual daqueles trabalhadores?

- Elisa, quase todos aqueles espíritos atingiram o chamado autoconhecimento e, aqueles que não o atingiram, estão se esforçando para tal. Não necessitam de estímulos externos, para fazerem o que fazem, nem pagamento ou recompensas de qualquer espécie. Sabem que são pequenos, espiritualmente, conhecem todos os meandros da personalidade, com todas suas misérias, conflitos, condicionamentos, ilusôes, e a nossa peculiar ignorância quanto à verdade daquilo que realmente somos. Não estão estacionados, vivem plenamente a onipresença Divina, e se sentem unos com ela, porque vivem como parte integrante do Universo.

E, assim, trabalham, responsabilizando-se com tudo, como se a casa fosse deles.Tudo o que fazem é por amor à vida, que está presente tanto neles como em qualquer manifestação Divina, daí a naturalidade e desprendimento que você sentiu em seu convívio.

- Patrícia, posso chamá-la de Gaivota?

Com meu consentimento, Elisa continuou:

- Então, Gaivota, como me explica o socorro prestado a mim. Ajuda? Trabalho? Bem realizado?

- Por que me chama de Gaivota? - perguntei.

- Gaivota é um pássaro muito bonito - respondeu ela -,quase todo clarinho, elegante e de voar preciso. Depois sempre deixa sinal de seus pezinhos na areia, mostrando que passou por ali. Deixa marcas. E você deixou marcas em nossas vidas, na minha e na de Walter.

Agradeci, sorrindo e,após pensar uns momentos,respondi que sabemos porque escutamos,repetidamente, o que deveríamos colocar em prática em nosso dia-a-dia.

- Ajudar é favorecer, facilitar, fazer alguma coisa a alguém, prestar auxílio. É necessário esquecermos de nós mesmos quando ajudamos a alguém. E quando ajudamos alguém a melhorar, melhoramos o mundo em que vivemos. Temos o dever de auxiliar, do melhor modo possível, aqueles que surgem no nosso caminho.

Trabalho é aplicação na atividade, por isso devemos trabalhar por amor ao trabalho, não para cobrar pelos seus resultados. Com nosso exemplo nas tarefas úteis, podemos fazer outros nos seguirem, embora cada um deva fazer o que lhe compete, sem medo, tentando aprender cada vez mais.

O amor precisa estar presente em tudo o que fazemos, porque nos torna mais eficientes. E assim trabalharemos com alegria e gratidão, realizando bem as pequenas tarefas, quando demonstraremos ser dignos das randes. Ao ajudar o próximo descobriremos o caminho da fraternidade e do amor. O que fazemos no presente, nos mostrará o que realizaremos no futuro. Sobre esse assunto, é muito interessante ler O Liuro dos Espiritos, de Allan Kardec, Parte Terceira, capítulo III, "Da Lei do Trabalho".

O Bem é praticado com Amor, pois ao fazê-lo nos tornamos melhores e estamos colaborando para melhorar a humanidade. É preciso fazer o Bem, expandindo os ensinamentos de Jesus, lembrando a todos sua doutrina de Amor. Mas sem confundir sentimentalismo com Amor, que deve ser benéfico e nos impulsionar na evolução. O Amor nos ajuda a vencer os obstáculos do caminho, e é o único capaz de nos redimir e nos levar ao progresso. Os resultados do Bem praticado só a Deus pertencem. Esqueçamos de créditos, nas tarefas da bondade, de vez que somos os primeiros beneficiados.

O Bem nos alimenta? Sim, alimenta a todos nós e nos fortalece, levando-nos ao aprendizado do Amor.

Fiz uma pausa, o assunto é fascinante, embora tenha muito para colocá-lo plenamente para aprender ainda sobre esse tena, para coloca-lo plenamente em prática. Pensei por momentos e minha amiga aguardou ansiosa que eu retornasse às elucidações.

- Elisa vamos mudar o enfoque de sua pergunta. Por que motivo alguém faz alguma coisa a outra pessoa? Mesmo sendo crente, de alguma seita ou religião, ou mesmo descrente?

Qual o motivo que leva um ato a ter resultado bom ou mau? Será sempre necessário existir algum motivo para se praticar alguma ação? Observemos as diferentes motivações que envolvem as ações da maioria dos seres humanos. Que motivo leva o avarento a trabalhar tanto e a explorar, quase sempre, seus semelhanes?

O egoismo, certamente. Que motivo leva o ladrão a agredir e roubar suas vitimas? O egoismo. Que motivo leva a maioria dos seguidores de determinadas religiões, para deixar de fazer o que gosta e somente obedecer os outros?

Não será pelo anseio de ter posse de uma situação sem problemas, mesmo que seja no Além? Isso também não será egoismo? Se, ao fazermos algo esperando recompensas, seja dos homens, seja de Deus, estaremos agindo com egoismo, embora dessa forma ajudemos muito outras pessoas e a nós mesmos, porque quem faz o bem trilha o caminho para se libertar desse sentimento, que é o egoismo. O Bem sempre beneficia, enquanto a maldade prejudica. O dia em que não mais agirmos negativamente, estejamos encarnados ou desencarnados, haverá Paz e Harmonia na Terra, pois todos iremos fazer o que deve ser feito.

Não haverá mais explorações nem comparações, pois isso é a causa de muitos conflitos, dores,sofrimentos e angústias na convivência dos seres humanos. Cada um de nós estará feliz com a vida que tem e fará todo esforço para melhorar seu trabalho físico e seu aprimoramento espiritual.

O desejo de posse, seja qual for, desaparecerá e teremos equilíbrio e Paz.

Você, Elisa, me perguntou o que concluo da experiência que tivemos juntas. Prefiro dizer que foi um período agradável em que aprendi muito e que poderei passar a outros a experiência.

Fazer o Bem estando desencarnado é muito mais fácil, pois podemos trabalhar horas seguidas em determinada tarefa, seja no Plano Espiritual, até mesmo no Umbral, ou entre os encarnados, e, ao terminá-la, ou vencendo nosso horário de trabalho, temos o equilíbrio das Casas de Socorro, do nosso cantinho nas Colônias ou dos nossos Abrigos. Nós nos recompomos rápido. E os encarnados? Eles têm seus afazeres físicos, têm a preocupação com a sua manutenção e de sua família.

Têm o corpo para cuidar, higienizar, conservar sadio e, quando não, tentar sanar suas deficiências físicas. São muitos, Elisa, os encarnados que fazem o Bem apesar de todas essas dificuldades e, embora alguns ainda o façam por recompensa, um dia se libertarão dessa conduta. Outros, e são inúmeros, fazem-no por Amor,tendo como recompensa o prazer de servir. Como admiro os que fazem o Bem! E esse fazer deve ser no presente, agora, no momento. Não deixe, você, agora encarnado,

Para fazê-lo depois. No Plano Espiritual certamente terá oportunidade, mas é aí no corpo físico que se tem o grande aprendizado do bem. E ele deve ser feito sem se cultuarem nomes famosos de desencarnados. Há muita sabedoria em praticar o bem com Amor e simplicidade.

Terminei minha explanação, trocamos ainda alguns comentários sobre o hospital. Elisa tinha que voltar ao trabalho, e nos despedimos com um abraço fraterno.

- Patrícia, tudo o que aconteceu ficará gravado na minha memória - disse ela com simplicidade.

Deixei o hospital, a Colônia Perseverança. Ainda estava no meu horário livre, a aula que eu daria só começaria mais tarde e, então, fui ver meus pais, que passavam uns dias no litoral,para descansar.

Não estava totalmente satisfeita com a resposta que dera a Elisa. Meditei sobre o assunto.Veio-me à mente a questão 642 de O Livro dos Espiritos, Parte Terceira, capítulo I, cuja resposta é: "É preciso fazer o Bem no limite de suas forças, porque cada um responderá por todo mal que tiver ocorrido, por causa do Bem que deixou de fazer."'s Aí está a grande responsabilidade de não se aproveitar o momento.

Menina e adolescente, estudei num colégio católico e gostava muito de uma frase escrita no altar da capela: "liolontá di Dio - Paradiso mio." Compreendi-a assim: "Fazer a vontade de Deus é minha alegria." Qual é a vontade de Deus em relação a nós? Penso que é que cresçamos rumo ao progresso, que sejamos bons, que compreendamos, amemos uns aos outros, e que façamos todo o bem possível ao próximo e a nós mesmos pelo trabalho e Amor.

Quanta fé possuía quem pronunciou essa frase e que exemplo nos deixou de resignação, ânimo e coragem.Também sobre o assunto, lembrei-me de um ensinamento de Jesus, contido no Evangelho de Lucas, XVII:7-10, quando o Mestre Nazareno nos ensina que o senhor não fica devendo obrigações ao servo, que fez o que ele mandou, e conclui dizendo:

"Somos servos inúteis; fizemos o que deveríamos fazer". Que temos que fazer? Seguir os mandamentos? Viver com dignidade e honradez? Não fazer o mal? Acredito que sim. E se não fizermos? Não seremos considerados nem servos. E para sermos servos úteis? Além de fazer o que nos compete, não praticar o mal, seguir os mandamentos, fazendo mais, muito mais.

Trabalhar com Amor ultrapassando nossas obrigações, para o nosso bem, para o bem do
próximo e, mais ainda, nada esperar em troca.

Encontrei meus pais caminhando na praia. A tarde quente de verão estava maravilhosa. É sempre encantador ver o mar com seu verde-azulado e com suas ondas a se desfazerem na areia. Caminhavam eles tranqüilos desfrutando a calma do local. Aproximei-me. Amo-os tanto!

Querendo obter mais informações sobre este assunto interessante, perguntei a meu pai, porque sua opinião foi, é e será sempre muito importante para mim. "Como é, papai" - disse-lhe de mente para mente -, "o que me diz sobre um trabalho realizado, o fazer o Bem, o porquê de o fazermos..."

Papai pensou e acompanhei seus pensamentos.

"Jesus em certa ocasião disse: O Pai age até hoje, eu também ajo. A vida é ação. Na natureza física tudo o que entra no estado de letargia apodrece e se desintegra. Semelhante é a nossa mente, que, se não for usada, petrifica e embrutece. Se canalizada para o mal, embora não regrida, produz dores e dívidas para si mesmo, pois quem prejudica se imanta ao prejudicado.

E aí viverá, no ambiente que construiu agredindo a tudo e a todos. O homem sábio, conhecendo as implicações da ação, caminha em sintonia com a natureza que, de momento em momento, aperfeiçoa sua manifestação. Faz das suas ações a razão de sua vida e, ao agir beneficamente, sente participar com Deus do seu perpétuo agir.Não há vida sem relacionamento, e é no aprimoramento das relações que construímos, que está um novo céu e uma nova Terra.

Portanto, uma tarefa realizada que resulta no bem de alguém não deve ser olhada como uma ajuda, tampouco como trabalho, muito menos para aquisição de crédito junto do beneficiado ou de Deus, mas sim como o próprio exercício de viver.

Pois, se Deus age, eu também preciso agir.

Jesus disse muitas vezes: Eu e o Pai somos um, só que Ele é maior que eu.

Quando chegarmos a compreender que o universo é nossa família, tudo o que venhamos a fazer,é para nós que estaremos fazendo ois tanto a casa como a família é nossa. Cuidemos de nossa casa e de nossa família, quando encarnados, sem esperar que alguém nos elogie por algo que é nossa obrigação. Fazer dessa forma é como compreendo e como procuro fazer.”

"Papai! Mas muitos encarnados não zelam bem por suas casas e nem cuidam bem de seus filhos".

"Fazer só a obrigação não dá merecimento, nem crédito, e nem deve ser alvo de elogios. Mas, se não cumprimos as obrigações, somos devedores, pois não realizamos o que era de nó sa responsabilidade. Quando ultrapassarmos o tempo e o espaço, não mais existindo em nós créditos e débitos, iremos fazer todo o Bem pelo simples prazer de comungar com a vida pelo profundo Amor a todas as manifestações Divinas.

Viver a certeza da onipresença de Deus é diferente do chamado crer, ou de ter fé. Aqui residem dois opostos; o crer é volutivo, incerto, mutável de acordo com a emoção do momento e o viver na onipresença é sólido. Vamos exemplificar em nossa família consangüínea: Pai e filha é parentesco, não é crença, é um fato de que não há dúvida. Vivemos plenamente o fato do vínculo que nos une aos parentes mais próximos.

Da mesma forma, como viver na onipresença de Deus não é um ato de momento, ou atitude de crença, é a visão plena e total que estou em Deus e Ele está plenamente em mim. Portanto, o que é Dele é meu e o que é meu é sempre foi Dele. Mas, apesar de não existir separação entre mim e Ele, eu precariamente existo, só Deus é plenitude total.”

O horário me chamava ao regresso. Beijei-os. Volitei a alguns metros do solo e olhei-os. À sua frente estava uma gaivota que, ao sentir a proximidade deles, voou tranqüila, ganhando com seu vôo, espetacular altura, deixando desenhados na areiaseus pezinhos...

Meus pais se afastaram e suas pegadas ficaram...

Há pessoas que passam pela vida e deixam marcas...

(18) - Citação tirada da tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa-IDE.
(N.A.E.)

(19) - Copiamos na íntegra esta frase, é assim que está grafada em uma das paredes de sua
pitoresca Capela. [N.A.E.)

FIM


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