segunda-feira

Nossos Filhos São Espíritos // 25

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O PÓS-ESCRITO QUE VIROU CAPÍTULO

EU ESTAVA PENSANDO EM ACRESCENTAR ao capítulo anterior algumas notas suplementares quando percebi que o mero pós-escrito seria insuficiente para comportar o assunto, que transbordava e exigia status de capítulo. Vamos, pois, a ele.

Como ficou dito, cedo encontrei-me, na vida, insatisfeito com as estruturas religiosas de minha infância. Não que as houvesse rejeitado sem mágoas. Foi bom enquanto durou, mesmo porque eu via em tudo aquilo a tranquila imagem de minha mãe e em tudo ouvia suas observações e ensinamentos. Na verdade foi tão forte a vinculação que houve um tempo em que pensei seriamente em dedicar-me à vida religiosa. 
Estranho como possa parecer, meus colegas de ginásio me puseram o apelido de Vigário, por causa de meus hábitos de reclusão, um pouco austeros, avesso a envolvimentos com os distúrbios próprios da idade e incapaz de pronunciar um palavrão, hábito que conservei a vida inteira. Sabia-se até que eu não gostava de anedotas ditas “picantes”, ou conversas de teor duvidoso, que então me constrangiam, como ainda hoje.

Eu me vira, de repente, sem uma religião específica, e isso, de certa forma, me incomodava e desencantava. Muitos anos depois, leria em Silver Birch, o sábio guia espiritual de Maurice Barbanell, que nós, as criaturas humanas, nos preocupamos demais com rótulos. Coisa semelhante encontramos em Saint-Exupery, que faz o Pequeno Príncipe dizer que as pessoas são muito fixadas em números. Realmente, logo que uma pessoa conhece a outra, quer saber quantos anos tem, quantos francos, cruzeiros ou dólares ganha por mês, quanto vale sua casa ou apartamento, quantos filhos possui, se os tem, e coisas dessa ordem.

Naquela época, contudo, eu não sabia ainda que não tinha a menor importância termos ou não rótulos. Eles podem servir para facilitar nossa identificação com os outros, mas pouco nos servem, se não simbolizarem uma convicção. Quisesse ou não, acho que isso me incomodava. O rótulo de católico não me servia mais, e eu não tinha outro para colar por cima.

O de protestante não me assentava, não sei por que misteriosas razões...

Quanto ao de muçulmano ou budista, deles não cogitara. O de ateu me repugnava liminarmente; o de espírita não me ocorrera ainda considerar, mesmo porque ficara em mim um resíduo de desconfiança, depositado por sermões e prédicas que ouvira e livros que lera, advertindo quanto aos “perigos” dessa “seita” ou “heresia” patrocinada diretamente pelo demônio, a mais segura para levar a pobre alma indefesa e incauta para os subterrâneos do inferno.

Seja como for, a busca para mim continuava. Eu tinha de ter algum rótulo, mas onde encontrá-lo e como saber que me serviria para repor o que eu recusara?

Paradoxalmente, contudo, eu “sabia” que havia um rótulo à minha espera, em algum lugar, ao qual eu ainda não chegara. Era, portanto, uma questão de esperar com a possível dose de paciência.

Enquanto isso, percorria regularmente as páginas do Evangelho e voltava a examiná-las nos pontos de meu maior interesse, especialmente as epístolas de Paulo, que mais me atraíam, se bem que muitos aspectos de seus ensinamentos me parecessem obscuros ou mesmo incompreensíveis.

Como, porém, tudo aquilo deveria ter um sentido e uma razão de ser, eu entendia que me faltava uma chave qualquer, com a qual pudesse abrir portas e cofres, que certamente guardariam riquezas de sabedoria.

Posso hoje perceber que eu era cristão, mas num sentido que não conferia com os modelos de cristianismo que me eram oferecidos. Além do mais, autoridades religiosas — eu as ouvira e lera durante tempo suficiente — decretavam que só era cristão — com direito a ir para o céu — aquele que pertencesse, com  exclusividade, à Igreja que elas representavam. Os dicionários me diziam a mesma coisa, ou seja, cristão era o indivíduo batizado e que professava o cristianismo. Eu fora batizado, é verdade, mas não podia, honestamente, dizer que professava o cristianismo.

Sem rótulo específico e em busca de um, vivi um bom punhado de anos. Na verdade considerava-me cristão e tinha, portanto, meu rótulo, mas de nada servia ele para os outros, que não o reconheciam como tal.

Foi somente aí pelos 35 anos de idade que comecei a examinar com seriedade a doutrina que os espíritos haviam transmitido a Allan Kardec. Pedira a um amigo pessoal, que sabia profundo conhecedor do assunto, que me indicasse um roteiro de leitura, e segui meticulosamente sua “receita”, prescrita num pequeno pedaço de papel, onde ele anotara alguns nomes de autores de sua confiança.

Não houve dificuldade alguma na aceitação dos conceitos contidos nessas obras. Pelo contrário, eu tinha a impressão de que chegara, afinal, ao caminho que me estava destinado percorrer. Estranho como possa parecer — e para mim foi estranhíssimo, naquela época —, os novos ensinamentos não eram novos para mim; ao contrário, iam tendo ressonância em minha mente, como coisas que eu conhecia e que estava apenas transplantando de alguma gaveta secreta do inconsciente para a consciência de vigília. Em suma, eu era espírita e não sabia!

Restava um sério problema a resolver. Minha mãe permanecia católica convicta e praticante. Fiel à sua maneira de ser, continuava considerando com sérias reservas e desconfianças tudo quanto se referisse a espíritos e espiritismo, que segundo lhe fora ensinado consistentemente, ao longo de toda sua vida, eram coisas do demônio. Como nunca foi fanática, conviveu pacificamente com parentes e pessoas de suas relações, simpatizantes ou praticantes do espiritismo.

Não sei se ainda em vida soube que eu me bandeara para o lado dos “hereges”. Se o soube, deve ter temido honestamente pela sorte de minha alma e muito deve ter orado por mim. Seu presente de aniversário — não tinha prata nem ouro, como disse Pedro — era assistir a uma missa e comungar por mim. Estou certo de que a pureza da sua fé e a convicção de suas preces muito contribuíram para que todos nós fôssemos encaminhados corretamente

pelos caminhos da vida. Ela parecia ter certa intimidade com Deus, e tinha mesmo, porque era hábito de uma vida conversar com ele, nos silêncios das suas horas de meditação ou enquanto velava, pelas horas mortas da noite, à cabeceira de um filho doente.

O certo é que eu não podia e não queria magoá-la. Guardei para mim minhas convicções, pois afinal de contas nosso Deus era o mesmo, como também nosso Evangelho, do mesmo Cristo, que ambos amávamos, cada um a seu jeito.

Havia, porém, uma dúvida a resolver: eu queria escrever sobre as coisas que, agora, circulavam pela minha mente. Queria transmitir um pouco daquelas idéias que vieram dar sentido às minhas aspirações. Mais do que isso, eu começava a entender, nos evangelhos e nas epístolas, aspectos que antes me pareciam obscuros ou de todo impenetráveis ao entendimento.

Em dezembro de 1956, com 36 anos de idade, fiz minha estréia como bisonho e tímido articulista, nas páginas de Reformador, que me abrigaria durante 24 anos. Mantinha meu compromisso de irrestrito respeito às idéias de minha mãe, e por isso os primeiros trabalhos saíram apenas com as iniciais de meu nome, exatamente iguais às dela: H.C.M.

Senti-me, contudo, no dever de escrever-lhe uma carta aberta, a fim de explicar-lhe como e porque me tornara espírita. Chamei a esse pequeno depoimento de “Carta à Mãe Católica”, como se pode ver em Reformador de maio de 1961. Assinei-a com o nome de João (de João Marcus, pseudônimo que adotaria logo em seguida e continuaria também a utilizar, mesmo depois que passara a assinar meu nome real).

Anos depois de sua partida para o mundo espiritual, Divaldo Pereira Franco, o querido amigo e médium baiano, transmitiu-me um recado que ele não estava entendendo, mas que reproduziu fielmente. Apresentara-se à sua vidência uma senhora, cuja aparência ele descreveu, que lhe pedia para dizer a João Marcus — e apontou para mim — que lera com muita emoção minha carta e agradecia as palavras de carinho.

— Quem é João Marcus — perguntou ele?

Expliquei-lhe o melhor que pude, sob o impacto das emoções do momento, o que tudo aquilo queria dizer.
Outros recados me mandaria ela e de outras vezes se apresentaria à vidência de sensitivos de minha confiança. Certa vez, quando atravessava eu um período de mais doloridas aflições íntimas, ela resolveu comunicar-se psicograficamente, ou seja, pela palavra escrita.

Ora, minha mãe ficara conhecida na família pela singela beleza e correção de suas cartas, escritas com uma letra muito pessoal, límpida, sem floreios ou sofisticações, tal como seu estilo e sua própria maneira de viver.

Levou para a vida no além o hábito de escrevê-las, como aqui, com a mesma serena beleza, naquele mesmo estilo fluente, sem literatice inútil, com a mesma tranquila emoção subjacente, com a mesma naturalidade, como quem conversa.

Ressalvados os aspectos pessoais, que não poderia transcrever, eis, em parte, o que ela me disse, naquele documento.

“Um coração de mãe é como uma fonte, donde o amor jorra constantemente, num fluxo ininterrupto que se perde pela eternidade afora. Os olhos de mãe, quando já não choram mais suas próprias lágrimas, ainda deixam escorrer, por eles, as lágrimas de seus filhos.

“(...) Nunca frui de muito falar, nem de escrever. E sabes que jamais me senti à vontade com as letras. De certa forma, elas sempre me intimidaram.

Agora sei que era o receio que meu espírito trazia de desviar-se do trabalho que deveria fazer.

“Em meus muitos silêncios, conversava com Jesus, tentando compreender-lhe os desígnios e obedecer-lhe a vontade. Agora sei que ele não era Deus. Mas agora, também, sinto-o mais junto de meu coração, mas real.

Contudo, não tive dificuldades em encontrar-me na nova realidade, porque minha fé, embora simples e sem atavios, era sincera e profunda. Aprendo agora que, para Jesus, não há santos nem pecadores, apenas irmãos a caminho da elevação.

“Encontrar familiares e amigos vivendo vida comum foi, sem dúvida, surpresa para quem esperava um céu inexistente. Mas foi também imensa alegria saber que inferno e demônio são palavras inventadas pelos preguiçosos, abrigados no comodismo do menor esforço.

“Agradeço-te, meu filho, seres o que és. O teres prosseguido nas convicções de tua fé, apesar do respeito e amor por mim. Hoje vejo que teria lucrado se, embora bastante avançada na vida física, tivesse escutado a melodia da fé nova que fluía de teu coração. Mas tudo são lições e hoje sigo aprendendo contigo quanto aprendeste comigo. Hoje sou eu que anseio passar de lição depressa para chegar logo ao fim do livro, que na verdade não existe, porque o Livro da Vida se desdobra nas páginas do infinito.

“Não esmoreça, filho. Se muito não pude dar-te, ao menos dei-te o exemplo da tenacidade e perseverança, confiando na vida e acreditando nos meus deveres.

“Estamos todos trabalhando e estudando. Aqui aprendemos que não existem separações de famílias ou convenções de sociedade. Aqui todos se identificam pelos anseios, esperanças ou dores. Marche para a frente. Não permita que a adversidade te afaste do caminho de teus deveres para com o Cristo e para com a tua fé. Tu sabes, melhor do que eu, o que ela vale.

Prossiga, filho.

É tua mãe quem te pede. Teu coração está guardado no meu coração.

“(...) Esta carta já se alonga mais do que o desejado e por certo já te perguntas como tua mãe, sempre tão calada, pôde dizer tanto. Agradeço a Jesus a oportunidade e rogo por ti, filho meu, para que o Senhor te recolha em seu regaço e te embale a cabeça cansada, acalentando-te na sua paz.

“Todo o amor de meu coração humilde. Helena, tua mãe.”

* * *

Aí está esse belo e comovente documento. Sei que não faltará quem diga, com uma ponta de ironia inconsequente, que não acredita nessas radicais conversões póstumas de devotados católicos. Acontece que ironizar não é argumentar. O testemunho firme e claro do fato dispensa o argumento. Não é que as pessoas se tornem espíritas depois que morrem, é que elas descobrem que são espíritos! E que apenas estavam aprisionadas em um corpo físico perecível. A única diferença em relação aos espíritas é que estes já sabiam que eram espíritos mesmo aqui, na carne.

Nada mais, mesmo porque somos todos irmãos, ainda que nem sempre amigos, e todos programados para o mesmo destino de felicidade e harmonia.

Uma pequena informação deve ser acrescentada para esclarecer o leitor acerca da “carta” de minha mãe. Apesar de suas canseiras e lutas domésticas, a lidar, dia e noite, com dez filhos, nós já íamos para a escola primária sabendo ler, escrever e contar. Sem ser particularmente brilhante, eu aprendera com notável facilidade. Para mim era enfadonho ficar retido em cada lição até que ela encontrasse tempo disponível para “tomá-la”. Por isso lhe pedia dispensar-me desse encargo, mesmo porque, mal iniciado o processo, eu já estava lendo as últimas lições da saudosa Cartilha da infância, de Thomaz Galhardo. 

Daí sua observação: “Hoje sou eu que anseio passar de lição depressa para chegar logo ao fim do livro (...)“ E logo a seguir a nova lição aprendida, adeque “o Livro da Vida se desdobra nas páginas do infinito”.

Desse depoimento pessoal, para ilustrar o problema da formação religiosa das crianças, só resta esclarecer uma dúvida que deixo com o leitor, já que não sei como decidi-la. Quem é mais grato a quem? Minha mãe, que agora me agradece, até pelo que não pude ou não soube fazer por ela, ou eu, pelo que ela fez por mim, embora achando que muito não pôde dar, senão o magnífico exemplo da sua fé? Pois não é isso o “muito” e o “tudo” que ela deu.


Paz a todos...

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