Capítulo Treze
Sombra de uma Árvore
Não estou passando bem! - expressei-me depois de vomitar novamente - Capataz! Zé Rolha não está bem - falou Marcinho, companheiro.
O capataz, com seu jeito arrogante, aproximou-se e fez cara de nojo ao ver meu vômito. Depois me olhou examinando. Não estava com boa aparência, havia vomitado muitas vezes, sentia dores fortes no abdome, que estava inchado.
- Vá para o alojamento! - ordenou-me o capataz.
- Ele precisa consultar um médico - opinou um outro companheiro.
- Zé deve estar se sentindo mal pela comida ruim que nos dão - falou Marcinho.
- Deixem de conversa, disse o capataz rispidamente. A comida daqui é boa, vocês é que são enjoados. Vá logo, Zé, e descanse por hoje.
Fui andando devagar, estava muito cansado. Desde o dia anterior eu não estava me sentindo bem. Deitei-me, nosso leito era de folhas e capim, dentro de barracos.
- Nunca pensei que minha situação nessa fazenda pudesse piorar e, piorou! - reclamei baixinho.
Sozinho, naquela hora do dia, no barraco, fiquei pensando na vida.
De minha família, conheci somente minha mãe, uma morena bondosa e trabalhadeira.
Nunca soube quem fora meu pai. Não frequentei a escola, nem meu nome sabia assinar.
Mamãe trabalhava de diarista; trabalhava muito e ganhava pouco. Tentava ajudar nas despesas de casa, e desde garoto ia para as fazendas trabalhar nas plantações com a enxada nas mãos.
Era tímido, achava-me feio e ninguém queria me namorar.Mamãe e eu nos dávamos muito bem e gostávamos um do outro.
- Se em vez de folha e capim meu leito fosse de palha, diria que essa cama era como a manjedoura em que Jesus nasceu - balbuciei e tentei me acomodar do melhor modo possível ao meu improvisado colchão.
Lembrei-me então das festas natalinas, da época festiva em que se comemora o nascimento do menino Jesus.
Quando pequeno queria tanto ganhar um presente, mas não tínhamos dinheiro. Nunca fora revoltado, mas não entendia o porquê de algumas pessoas terem e outras não. Ali, deitado e com dores, recordei-me com detalhes da resposta de minha mãe, quando certa vez perguntei o porquê de várias crianças possuírem muitos brinquedos, alimentos, roupas, e outras, como eu, não terem nada.
"Zé Pedro, meu filho, não sei lhe explicar o porquê dessa diferença, mas nunca culpe Deus, Nosso Pai Amoroso. Somos nós mesmos que fazemos essas diferenças. Acho que é porque erramos, e Deus bondoso não nos manda para o inferno, mas para cá novamente. É melhor não reclamar, aceitar e ser bom. Viva de tal forma que quando você vir Deus não tenha do que se envergonhar.
O rosto de minha mãe veio em minha mente. Como gostava de vê-la sorrir. Falei baixinho:
- Mamãe, tenho feito o que me aconselhou. Estou sofrendo muito aqui, mas nunca me desesperei, tampouco digo maldições. A senhora tem razão. Fazemos e pagamos. Acho que se eu vir Nosso Pai do Céu não vou me envergonhar.
Uma musiquinha de Natal veio em minha mente, não estava disposto a cantar e lembrei-me do único Natal em que ganhei um presente.
Mamãe me levoü a um local, num centro espírita, onde estavam distribuindo alimentos e brinquedos. Ganhei um carrinho, uma bola e uma roupa nova. Como mamãe e eu ficamos contentes! Segurar aqueles brinquedos,
sabendo que eram meus, foi uma doce alegria que inundou meu coração de gratidão.
- Como foi agradável aquele dia! - exclamei baixinho.
Mamãe fez uma comida gostosa e brinquei muito.
Antes de dormirmos, rezamos juntos agradecidos.
"Vamos orar" - disse ela -, "por aquelas pessoas bondosas, para que elas não desanimem nunca de fazer o bem."
Talvez, concluí ao recordar esse Natal, as diferenças sociais e financeiras existam para que todos, tanto os que fazem o bem quanto os que recebem, aprendam a se amar como irmãos.
Olhei as pontas dos meus dedos e sorri ao recordar:
Tive um acidente há alguns anos, cortei a ponta de dois dedos da mão esquerda.
Estava no campo quando um facão me cortou, saiu muito sangue! Um garoto que estava ao meu lado apavorou-se e me indagou:
"Zé, o que faço com você para que seus dedos parem sangrar?"
"Coloque uma rolha!" - exclamei.
A história se espalhou e ganhei o apelido: Zé Rolha.
Estava com quase trinta anos quando me apaixonei por Luzia, uma morena faceira, que tinha dois filhos.
Fomos morar juntos.
Mamãe não gostou, achei que era por ciúmes.
Fiz de tudo para agradá-la. Ajudava-a no serviço de casa e tratava bem os filhos dela. Para mim, estava tudo bem, já fazia quatro anos que estávamos juntos quando percebi que meus amigos me olhavam de modo diferente ao me cumprimentarem, davam sorrisinhos marotos. Descobri que Luzia me traía. Fiquei desgostoso e voltei a morar com minha mãe.
- Como sinto saudade da senhora, mamãe! - exclamei suspirando.
Voltei a lembrar:
Um amigo me falou que em determinado local estavam contratando pessoas para trabalhar numa fazenda. Fomos lá.
De fato,um senhor estava mesmo admitindo homens para trabalhar numa fazenda longe dali. Dava preferência a jovens e solteiros. Já não era jovem, estava com trinta e cinco anos, mas era solteiro.
- Devia ter desconfiado!-resmunguei. Vomitei novamente, sentia-me fraco. E os pensamentos continuaram..
Despedi-me de mamãe e vim para esse lugar. Muito longe. Aqui ficamos isolados.
Não recebemos nada do que nos foi prometido.
Temos de comprar tudo, até alimento, que é muito caro. E para comprá-los, contraímos dívidas, e tornamo-nos todos devedores.Não temos onde dormir, não podemos ir embora e somos obrigados a trabalhar muito, e todos os dias. Os capatazes nos vigiam e até batem em quem os desobedece.
- Somos escravos! - murmurei baixinho.
Não tive mais notícias de minha mãe.
- Mamãe, como a amo! Que saudades - falei.
Já fazia três anos e não soubera mais nada do que acontecia fora daquela fazenda. Minha mãe devia estar sofrendo muito não tendo notícias minhas. Ela deveria achar que eu morri. Chorei de saudade e de mal-estar.
Só que não escorriam lágrimas dos meus olhos, achei estranho. Somente depois, na espiritualidade, soube que esse fato pode ocorrer com pessoas desidratadas.
Quando meus companheiros retornaram ao entardecer ao acampamento, foram solícitos, ajudando-me a me banhar. Tomávamos banho num riacho perto dos barracos. Eles também lavaram minha roupa. Eu não quis me alimentar.
À noite, cada um se acomodou no seu canto. Meus companheiros, cansados, adormeceram logo; eu não conseguia dormir, estava com dores, enjoo e vomitei várias vezes.
Ao amanhecer estava muito mal. Não conseguia ficar em pé. Meus amigos chamaram os capatazes.
- Zé, fique descansando! - ordenou um dos capatazes.
- Vocês têm de levá-lo ao médico, ele não está bem, vejam como sua barriga está inchada - comentou um dos meus amigos.
Houve uma discussão. Os capatazes não queriam me levar à cidade nem ao hospital, porém meus companheiros exigiam.
Os três capatazes se afastaram, conversaram baixinho e voltaram com a decisão:
- Vamos levar Zé Rolha para o hospital da cidade.
Marcinho e Leo, meus companheiros, ajudaram-me, colocando-me deitado, atrás da camionete. Dois dos capatazes entraram no veículo e partimos.A estrada de terra com muitos buracos fazia o carro dar solavancos, que me maltratavam; vomitei muitas vezes.
Depois de um tempo, pararam. Os dois me pegaram pelos braços e me tiraram do veículo.
- Infelizmente, Zé Rolha, você vai ter de ficar aqui.
- Por favor, não brinquem! O que farei aqui sozinho? Nem andar consigo. Não façam isso - pedi implorando.
- Não dá para levá-lo ao médico ou ao hospital. Se fizermos isso, eles irão nos denunciar. Depois, quem mandou você ficar doente?
Não estava acreditando no que acontecia. Eles me arrastaram para fora da estrada. Ali era uma mata.
Pararam num local.
- Vamos fazer logo, disse um deles.
Atiraram em mim. Foram dois tiros no peito. Senti uma dor aguda e terrível me queimar. Fiquei no chão. A dor foi amenizada. Vi os dois cavarem um buraco.
Esforcei-me e levantei. Melhorei dos enjôos e do mal- estar, somente sentia uma dorzinha no peito. Fiquei olhando os dois cavarem e pegarem meu corpo, somente o corpo, porque eu continuava ali, olhando-os.
Colocaram-no dentro do buraco e cobriram de terra.
Caminharam para a camionete.
"Hei! Vocês não vão me deixar aqui, ou vão?" - gritei.
- Você falou alguma coisa? - perguntou um deles.
- Não! - respondeu o outro.
E foram embora.
Observei o local e vi uma árvore muito bonita, andei devagar até ela e deitei à sua sombra.
- Bem - resmunguei. - Há muito tempo queria me deitar durante o dia embaixo de uma árvore. Vou fazer isso agora.
Acomodei-me, observei-a, achando-a linda. Gostei de ficar ali, foi me dando sono e dormi.
- Não é que adormeci - falei baixinho - embaixo de uma árvore como desejava!
Sinto-me melhor. Nem parece que estou doente. Que faço aqui mesmo?
Lembrei-me. Os dois capatazes me largaram perto da estrada, do mato, atiraram no meu corpo e o enterraram.
Apavorei-me e tremi de medo. Pensei nos meus companheiros lá da fazenda e os escutei:
- Zé Rolha está no hospital. Tomara que fique bom!
- O capataz nos disse que ao sair de lá, ele irá embora. Já não serve mais para trabalhar.
Ouvi os comentários, mas sabia que eles estavam lá no acampamento
"Estou louco? Delírio? Estou sonhando? Ou... morri?" - pensei.
Senti a resposta na última pergunta. Já escurecia, encolhi-me perto do tronco da árvore, como se essa fosse me proteger e gritei:
- E agora?
"Nos momentos difíceis, ore!"
Era como se alguém me falasse. E foi o que fiz. Ajoelhei-me no chão e roguei ajuda.
- Minha Mãe do Céu, Senhora Nossa, socorra-me! Acho que morri! Mande-me, por favor, seu terço para que eu possa por ele subir ao céu. Amém!
Orei mais ou menos assim, porém repetindo muitas vezes o nome de Nossa Senhora, chamando por auxílio.
E ele veio.
Vi uma luz que julguei ser Maria, mãe de Jesus e escutei alguém me pedir para ter calma. Vi dois vultos que foram tomando a forma de dois homens risonhos e de semblante tranqüilo.
- Morri? - perguntei a eles.
- Somente seu corpo físico - respondeu um deles.
- Que será de mim agora? - indaguei-os, sentindo grande autopiedade.
- Vai continuar vivendo em um local que fez por merecer. Será feliz, amigo!
Venha conosco!
Ajudaram-me a levantar; demos alguns passos e entramos num veículo, achei que era uma camionete.
Somente tempo depois vim a saber ser um aerobus, um transporte que se usa aqui na espiritualidade.
Acomodamo-nos no veículo; dormi tranqüilo. Acordei num leito macio e cheiroso e estava com roupas também limpas. Senti-me maravilhosamente bem. Espreguicei-me e um senhor me cumprimentou sorrindo:
- Bom dia, José Pedro! Como está? Quer se alimentar?
Ofereceu-me uma bandeja com sucos, frutas e pães.
- Sinto-me um rei sendo servido. Obrigado!
Fiquei dias ali e me senti felicíssimo. Estava num quarto com banheiro, comendo alimentos gostosíssimos.
Tudo era muito limpo, eu estava descansando e sentindo-me bem. Agradecia a Deus e às pessoas que me serviam.
Minha adaptação no plano espiritual foi prazerosa.
Passei a fazer pequenas tarefas e, o melhor, fui para a escola aprender a ler e a escrever.
Desencarnei por causa dos tiros, mas meu corpo físico, com apendicite aguda, ia mesmo desencarnar. Em momento algum tive rancor, raiva dos dois capatazes ou de outras pessoas.
Soube de minha mãe; ela estava muito triste por não saber de mim. Sozinha e doente, vivia de esmolas. Nem dois anos haviam se passado, quando mamãe desencarnou e pôde vir ficar comigo. Nosso encontro foi emocionante, choramos abraçados. Assim que ela se recuperou, fomos morar juntos numa casinha linda.
Minha mãezinha também foi estudar.
Aprendi muito na espiritualidade, podendo colocar os ensinamentos em prática.
Não recordei de minhas outras passagens pelo plano físico, minhas outras encarnações.
Soube somente que fora anteriormente um capitão do mato, um perseguidor de escravos. Por atos maldosos que pratiquei sofri muito por remorso e essa encarnação foi uma bênção, quitei minhas dívidas. E, graças a
Deus, não me sinto mais devedor.
Não tenho mais carma negativo (*7.)
Anos se passaram, tive a bênção de ser útil em várias formas de servir. E, sempre gostei de sentar embaixo de uma árvore, nas minhas horas de folga, durante o dia.
Fiz desse ato um exemplo que deveria ser seguido por todos. As árvores nos dão muitos benefícios e nada nos cobram por eles.
Desse modo devo agir, fazendo o bem, porque assim tem de ser feito. Quando desencarnei acomodei-me debaixo de uma árvore, e aquela sombra foi um acalento, um abrigo. Assim, desejei ser também um abrigo
de consolo para os outros, e tenho me esforçado para conseguir.
Quando pude escolher em que trabalhar, fui contente fazer parte de um grupo de socorristas que auxiliam pessoas que foram assassinadas. Tenho, nesta tarefa, visto muitos fatos tristes de torturas e crimes cruéis.
Tentamos amenizar essa passagem difícil, às vezes, sem poder fazer nada, então oramos ao lado dos que agonizam. Tenho a impressão de que somos como as árvores que lhes dão sombra contra o calor do ódio. Temos carinho e damos atenção especial para crianças que tiveram o corpo físico assassinado. O socorro é realizado de muitas formas. Tentamos desligar o espírito da matéria morta, dar os primeiros socorros, mas somente são levados para os abrigos aqueles que perdoam e querem receber o que as casas de auxílio, aqui no plano espiritual, têm para oferecer.
Muitos desses socorridos não ficam nos nossos postos de socorro, não aceitam o que oferecemos, acham rígida a disciplina das casas, saem e quase sempre querem se vingar.
Para nós, os socorristas, não importa o que fez o desencarnado para receber a reação de ter o corpo físico morto nessas circunstâncias. Fazemos tudo para auxiliá-lo e oramos também pelos assassinos. Sabemos que quem faz, para si faz. E crimes cruéis trazem conseqüências terríveis para quem os comete. A crueldade é como um lodo fétido grudado no perispírito, e são necessárias muitas lágrimas de dor para limpar.
Amo o que faço e respondo carinhosamente às indagações que escuto dos socorridos: "E agora? Que faço?".
- Perdoe, peça a Deus auxílio e confie! Porque não acabamos com a morte do físico, a vida continua. E sempre encontramos sombras de árvores a nos dar descanso nas caminhadas da vida.
José Pedro
Explicações de Antonio Carlos
Vemos, na história de José Pedro, que ele resgatou pela dor, erros cometidos em vida passada. Agiu como alguém que, tranqüilo e aliviado, foi quitando suas dívidas e no término ficou feliz por dizer: "Quitei!". Poderia, José Pedro, ter resgatado com trabalho no bem, ajudando a outros.
A escolha foi dele. Mas esse meu amigo ajudou muitas pessoas. Caridade material, segundo ele, fez pouco, pois não teve condições.Mas, não esqueçamos do óbolo da viúva do Evangelho.Foram muitas as vezes em que ele se alimentou pouco para dar sua porção aos outros, trabalhou mais para os companheiros descansarem, e fez muito bem ao seu próximo; porém, para ele que era humilde, achou que não fizera nada, mas fez, pois foram esses atos que lhe deram crédito.
O socorro realizado, no qual necessitados são levados aos abrigos, postos de socorro, colônias, é visto pelos socorridos de muitos modos. Para alguns estar na enfermaria num hospital da espiritualidade não é bom. Como também outros não acham bonitos os lugares simples como essas casas de auxílio. Muitos se incomodam com a ordem e a disciplina que tem de existir nos abrigos. E para outros como José Pedro, são realmente locais de alegrias, felicidades, pessoas assim se afinam e os têm por moradia.
O grupo de socorristas, do qual José Pedro faz parte, realiza um excelente trabalho de auxílio,e,infelizmente, eles têm tido muito o que fazer. A violência aumenta em períodos difíceis, e eles com carinho, muito amor tentam socorrer vítimas dessa violência e, dentro do possível, de suas metas de trabalho, fazem de tudo para ajudar pessoas que foram assassinadas.
E José Pedro não somente dá sombra aos seus acolhidos como também doa frutos de amor para alimentar almas, deixando em cada coração consolado uma semente da gratidão que certamente um dia germinará, despertando neles a vontade de mudar a forma de viver.
8 • KARDEc, Allan O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo 13, item 5. São Paulo: Petit Editora (N.E.).
(*7) • carma: expressão popularizada entre os hindus, que em sânscrito quer dizer "ação" a rigor, designa "causa e efeito". Leia mais: Ação e reação. Francisco Cândido Xavier. Ditado pelo Espírito André Luiz. Capítulo 7, 1 6 edição. Rio de Janeiro: FEB, 1993 (N.E.).
Paz a todos...
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