Capítulo 2
Mala vazia
Que coisa! Não sei o que está acontecendo comigo. E esta dor está bem chata!" - resmunguei aborrecido.
Estava a caminho do banco e, no momento, parado no trânsito. Uma senhora que caminhava pela calçada me informou do ocorrido:
- Teve um acidente na esquina, nada grave, logo o trânsito vai ser liberado.
- Obrigado! - agradeci sorrindo.
E os pensamentos vieram novamente:
"Se eu tivesse tido mais paciência com duas companheiras e freqüentadoras do centro espírita em que tentava ser útil, elas não haviam brigado e se afastado da casa." As duas me fizeram perder a paciência - tentei me justificar.
"Somente se perde o que se tem. E você, tem a virtude da paciência?"
"Acho que deveria ter tentado apaziguá-las."
E o monólogo prosseguia; embora tentasse pensar em outras coisas, voltavam os pensamentos em que dialogava comigo mesmo. E assim foi durante todo o dia.
Lembrei-me das vezes em que fiquei nervoso no meu segundo lar: a casa espírita.
"Acho que não fui caridoso com Toninho. Também ele estava levando alimentos arrecadados para sua casa."
"Tentou ao menos saber o porquê de ele fazer isso? Será que não estava passando necessidades?"
"Aparentemente não tinha motivos, ele estava empregado" - justifiquei-me.
Pensei também em alguns fatos desagradáveis que ocorreram em minha vida familiar.
Ainda bem que foram poucos, e todos eles me pareceram sem importância. Estava sendo bom filho, esposo e pai, senti que eu mesmo não tinha queixas sobre mim nessa parte, com a família.
Assim como também não estava me cobrando as atitudes que tive com outras pessoas que conviviam comigo no trabalho e na sociedade.
Dei um longo suspiro. O trânsito foi liberado, prestei atenção e me dirigi ao banco.
Enquanto esperava ser atendido, os pensamentos voltaram:
"E se tivesse me dedicado mais à assistência social? Participado com mais atividades nas campanhas? Acho que não fiz visitas aos doentes que poderia. Não levei consolo aos pais que tiveram filhos desencarnados. Poderia ter feito mais, muito mais."
O gerente me chamou:
- Senhor Nelson, por favor!
"Chega! Que pensamentos persistentes! Se não fiz, vou fazer agora e pronto!"
Aproximei-me do gerente e o cumprimentei.
- Como está, senhor Nelson?
- Com algumas dores na coluna; vou marcar uma consulta com meu médico - respondi.
Resolvi o problema com o gerente, voltei ao escritório e à noite, em casa, depois do jantar, sentei-me no sofá para ler o jornal e novamente preocupei-me com os pensamentos-.
"As malas, será que estão arrumadas?" - indaguei, pensando nelas.
Desde que me tornara espírita compreendera que a morte é somente uma mudança na forma de viver e tranquilizei-me; antes tinha um medo terrível desse fato que é natural a todos nós. Então resolvi acumular obras boas que me acompanhariam nessa viagem em que faria só. Imaginei algumas malas e nelas, dia após dia, colocava mentalmente, algo que julgava ter feito de bom.
Tomei um remédio para amenizar as dores e fui dormir.
Acordei de madrugada com uma forte dor, não consegui nem falar. Devo ter gemido, pois, acordei minha esposa que acendeu a luz. Vi temor nos seus olhos. Ouvi-a falar ao telefone, chamando a ambulância e os filhos. Tenho dois que já estão casados.
Ela pegou na minha mão, senti-me seguro. Outra dor forte, aguda, que me deu a impressão de que algo explodia em meu peito; fui apagando. Esse "apagando" quer dizer "sumindo". Ainda vi minha esposa passar as mãos sobre meu peito, ajeitar minha cabeça e me chamar:
- Nelson!
Acordei. Dei uma olhada no local onde estava. Era um quarto estranho. Somente mexi os olhos. Estava num leito com lençóis brancos. Do lado esquerdo havia uma janela fechada, por onde entrava tênue claridade. Do lado direito, duas portas, uma mesinha de cabeceira e uma poltrona.
- Devo ter desencarnado! - exclamei baixinho. Estava bem, tranqüilo e me sentindo confortável. Semsaber o que fazer resolvi ficar quieto.
"Se eu não tiver desencarnado e estiver em um hospital de encarnados, falando que morri, eles acharão que enlouqueci. É melhor esperar" - decidi.
Não demorou muito, um senhor entrou no quarto. Olhei-o e achei que o conhecia.
- Bom dia, Nelson! Como está passando? - ele me cumprimentou sorrindo.
- Bom dia! Estou bem! - respondi.
- Está precisando de alguma coisa?
- Não, obrigado. O senhor é médico?
- Não sou médico, e sim seu amigo - respondeu. Fiquei sem saber se perguntava onde estava e o que me acontecera. Ele, vendo-me encabulado, explicou:
-Você, Nelson, sofreu um infarto e está se recuperando. "Sem soro? Não vejo instrumentos hospitalares. Não devo estar encarnado!" - pensei.
Olhei novamente para ele. Veio na minha mente a lembrança dos amigos da casa espírita. Recordei-me da descrição dos médiuns videntes sobre os nossos orientadores desencarnados, lembrei-me com detalhes do que falavam de um deles, o que estava sempre ao meu lado, orientando-me. José, assim o chamávamos.
Enquanto me recordava desse fato, ele ficou quieto. Observei-o bem.
"Parece com ele ou é o próprio José?" - indaguei-me.
Resolvi perguntar:
- O senhor é meu amigo porque trabalha no centro espírita que freqüento? Do lado espiritual? É o José?
- Sim, sou. Tenho imenso prazer em tê-lo aqui conosco.
- O que aconteceu?
- Como já disse, você teve um infarto e os órgãos do seu corpo cessaram suas funções.
Nós, os companheiros desencarnados, que por anos trabalhamos com você, pudemos desligá-lo da matéria morta e trazê-lo para cá. Está na ala de recuperação da colônia, situada no espaço espiritual da cidade onde viveu encarnado.
Olhava-o atento, ele sorriu e perguntei em tom de indiferença - parecia que o assunto era corriqueiro, como se indagasse: "Você leu esse livro?".
- E meus familiares?
- Comportaram-se e agiram muito bem, demonstrando os conhecimentos adquiridos.
Sendo espíritas, deram exemplos de como se deve agir nesses momentos ainda tão difíceis para os terráqueos. Você recebeu muitas orações dos companheiros e teve um velório e um enterro tranqüilos, dignos de um aprendiz do Evangelho.
Fiquei quieto. Depois de dois longos minutos, esse senhor, percebendo que eu desejava ficar sozinho, sorriu e se despediu.
- Nelson, vou deixá-lo a sós um pouquinho. Volto logo. Acenei com a cabeça concordando, e ao ficar sozinho, fiquei a pensar.
"Ontem não estava me sentindo bem. Tive aqueles pensamentos estranhos. Não, acho que não eram estranhos, eram reais.Deixei de fazer muitas coisas, e outras fiz de forma errada. E a morte me surpreendeu...".
Comecei a ficar inquieto, a suar, senti minhas mãos geladas.
"Não fiz o que deveria ter feito! Não julgava que isso ia ser cobrado." Passei a respirar com dificuldade e senti uma dorzinha no peito.
"Morri. E agora?"
Senti um pavor que me paralisou no leito, devo ter arregalado os olhos. Falei alto, repetindo a indagação:
- E agora?
- Nelson, por favor! - disse José, entrando no quarto novamente. - Calma!
E estendendo as mãos sobre mim, deu-me um passe. Fui me tranqüilizando.
- O que lhe aconteceu? Você estava tão bem! - ele indagou.
- Sou infeliz! Deixei de fazer muitas coisas - queixei-me. Não me dediquei como deveria à assistência social, não apazigüei as discórdias, não fiz...
- Pare! - ordenou-me José. - Não se recrimine assim! Você vai agora me dizer o que fez de bom para a casa espírita.
- Eu? O que fiz?
- Sim, você! Que tal lembrar-se dos passes que aplicou, das entrevistas em que aconselhou e consolou a muitos, das orientações que deu a desencarnados necessitados de ajuda por meio dos trabalhos de desobsessão, dos livros espíritas que emprestou, doou e...
Foi falando dos pequenos atos que fiz, e fui melhorando, José parou de falar, indaguei-o aflito.
- E agora? O que faço?
- Primeiro, descanse para se recuperar; depois aprenderá a viver sem o envoltório físico e a ser útil à colônia que o abriga.
- O senhor falando assim, parece fácil - expressei-me.
- É, de fato é fácil. Lembre-se, Nelson, de que a vida continua sem saltos e sem complicações, por isso não a complique. Não se deixe abater por pensamentos negativos como esses que teve. Pense no presente, é no momento atual que devemos fazer o bem para sermos bons um dia.
Envergonhei-me do vexame que dei, José sorriu compreendendo.
- Nelson, todos nós sabemos que os órgãos do corpo físico um dia cessam suas funções. Mas, quando ocorre conosco, é um acontecimento especial, porque esse momento é nosso. E nós é que passamos. Agora, durma para descansar, ficarei aqui até que adormeça.
Quando acordei vim a saber que trinta dias já haviam se passado da minha mudança de plano. Cobrei de mim mesmo o que deixara de fazer quando encarnado, amargurei-me, entristeci-me, sentindo-me um pouco fracassado. Quem pode, tem obrigação de fazer. E sofri, julguei a mim mesmo. Mas compreendi que não basta se lamentar e me esforcei para melhorar. Se não realizei mais coisas, agora estava tendo a oportunidade de realizar.
Fiz uma viagem em que mudei de plano, e somente o que me acompanhou foram as minhas obras! Voltei com a bagagem quase cheia, aproveitei encarnado muitas das oportunidades que tive. Aprendi, erradiquei alguns vícios, adquiri virtudes, mas me incomodava o espacinho que deixei vazio.
Resolvi reagir. Levantei-me e imaginei as malas que quando encarnado mentalizei, aquelas em que fui colocando meus atos. Abri o armário do quarto e também a primeira mala. Continuei a imaginar, ia pegar meu aprendizado para colocar dentro da gaveta.
Parei. Compreendi que não se guardam conhecimentos adquiridos em locais. Eles estavam dentro de mim.
Retornara à pátria espiritual. E voltara sabendo como era, o que encontraria. Eu estava num lugar de maravilhas e com amigos. Ajoelhei-me e agradeci a Deus; lágrimas rolaram pelo meu rosto. Senti-me agradecido e dei graças.
Fiquei mais cinco dias no hospital, depois fui hospedado numa casa com amigos.
Encantei-me com as belezas da colônia. Lera em livros espíritas descrições das cidades espirituais, mas vê-las pessoalmente é uma felicidade indescritível.
O tempo passou, de aprendiz tornei-me servo útil, um morador pelos muitos serviços prestados. Pude saber e estar sempre com meus familiares, e assim amenizar minha saudade.
Hoje, acho engraçado ao recordar aqueles momentos em que receei, sem razão, estar desencarnado. Sofri muito naqueles minutos. Mesmo com conhecimento não me isentei de ficar inseguro, de sentir medo. Ainda bem que aquela agonia passou rápido. Hoje estou muito feliz, tentando não deixar mais nenhuma obra que possa ser feita, sem fazer.
E, penso nas malas, não quero deixar nenhuma vazia, porque sei que mudarei de plano novamente. Um dia, reencarnarei novamente. E quero ter uma boa bagagem, com boas obras, pois elas são tesouros conquistados.
Anseio servir sempre para ajudar a melhorar a Terra - o planeta que temos por graça para morar -, pois tornando-o melhor, teremos um lar de bem-aventuranças.
Nelson
Explicação de Antônio Carlos
A história da vida de Nelson é um exemplo. Foi um servo útil, tanto que mereceu um socorro imediato e foi levado para uma colônia. Infelizmente são raras as pessoas que ao desencarnarem não se sintam como ele, que poderia ter feito mais a si e ao próximo, julgando-se devedoras, porque oportunidades de praticar o bem, fazê-lo a outros e a si mesmo todos temos, quando encarnados. Tranqüila é a desencarnação dos que agem como Nelson; felizes e bem-aventurados os que realmente retornam à pátria espiritual, tendo no plano físico feito tudo o que podiam.
Paz a todos...
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