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“BEM, VAMOS LA!”
OS MAIS DRAMÁTICOS DEPOIMENTOS colhidos pela dra. Helen Wambach são os que contam as emoções e as perplexidades do nascimento em si, ou seja, o momento do parto. Muitos aspectos inesperados e até paradoxais foram revelados nesse mergulho nas profundezas da memória integral das pessoas.
Como vimos, a doutora conseguiu que 84% de seus pacientes, num grupo de 750, se lembrassem, com impressionantes detalhes, do significativo drama cósmico do nascimento. Com algumas constantes observadas, ela montou um quadro de não poucas surpresas. A primeira delas foi, como já vimos, que morrer constitui, habitualmente, uma experiência agradável, pelo seu conteúdo libertador. É a volta a uma dimensão em que temos uma visão mais ampla da vida, uma incrível capacidade de movimentação e de entendimento, ao passo que nascer traz consigo um componente de incerteza, de melancolia, de inquietação ou franco desgosto.
Muitas são não propriamente queixas dos nascituros, mas suas apreciações críticas sobre aspectos desagradáveis, senão negativos, que encontram logo à soleira da nova existência que se preparam para viver.
Tentemos resumir tais depoimentos para não nos estendermos demais.
Em primeiro lugar, o ato físico de nascer. A criança vem de um estágio dentro do organismo materno, onde se encontrava em ambiente silencioso, tépido e escuro, além de aconchegante e confortável. Ao emergir, muitas vezes de maneira inadequada, abrupta, quase violenta, é atirada em um contexto extremamente agressivo, como se, literalmente, saltassem sobre ela e a envolvessem três fatores adversos: o frio, a intensa luminosidade e o barulho.
São praticamente unânimes as observações nesse sentido, pois o parto é feito sob a intensa luz de refletores e, usualmente, a criança fica, por alguns momentos pelo menos, nua e abandonada sobre a fria superfície de uma peça, na sala de operação, a perceber à sua volta toda aquela nervosa agitação de pessoas que se movimentam e falam. Chocam-se instrumentos, zumbem aparelhos e mecanismos diversos, especialmente quando ocorre alguma crise e a mãe e ou o bebê têm de ser atendidos em regime de emergência.
Muitos são também os que reclamam da precipitação com que é feito o parto, em momento em que a criança tem a convicção de “ainda não estar pronta” para emergir do lado de cá da vida.
Isso ocorre seja porque o parto está sendo induzido ou porque a cesariana, que se vai tornando cada vez mais rotineira, foi programada segundo conveniências do médico e ou da família, e não em sintonia com os critérios universais da natureza.
A sensação de estar sendo forçada antes do momento apropriado adquire, às vezes, dramática intensidade. Uma pessoa descreveu da seguinte maneira suas impressões:
No canal do nascimento, certa força continuava a me empurrar. E eu nada podia fazer, pois não havia onde me agarrar ou pendurar. Imediatamente após o nascimento, senti o súbito impacto do ar frio, luzes brilhantes e gente usando uma roupa esquisita.
Senti-me indignado no canal (expõe outro) porque eu estava sendo forçado a sair antes do tempo que desejava. Logo que nasci, observei a parede, de um branco intenso, a apenas uma jarda diante de mim. Não estava consciente dos sentimentos das demais pessoas por causa da minha intensa fúria.
Acho que a tônica de tais depoimentos é o extraordinário senso de maturidade, de dignidade, de percepção e sensibilidade das pessoas regredidas. Quem está ali, vivendo a traumática experiência do nascimento, não é um bebê inconsciente, ignorante e “desligado” de tudo, mas um ser adulto e amadurecido, na plena consciência de seus poderes e recursos intelectuais. Nele se percebe, muitas vezes, uma inteligência superior e uma experiência de inesperada amplitude e profundidade. E mais: são pessoas dotadas de apurada capacidade crítica, em condições de captar, com incrível facilidade, não só o que se diz à sua volta, mas até o que se pensa, ou apenas se sente, ainda que a palavra dita seja diferente e oposta àquilo que realmenteestá na mente da pessoa que fala.
Vimos há pouco a indignação de bebês que foram obrigados a nascer antes de se sentirem em condições de fazê-lo. Há mais, contudo. Eles percebem, claramente, se estão sendo tratados condignamente e com interesse e amor ou se estão sendo rejeitados ou considerados meros objetos ou coisas que nem alma têm. Dói-lhes a frieza profissional e apressada de médicos e enfermeiras, ou o sentimento de rejeição e desapontamento da mãe ou do pai, o ciúme do irmão mais velho ou a irritação da avó.
“Como posso me comunicar com essa gente?” pergunta a si mesmo um deles. Minha impressão era a de que as pessoas, na sala de parto, não sabiam de nada e eu sabia tudo aquilo (diz outro). Isso me pareceu comicamente divertido.
(...) percebi que meu espírito observava tudo. Juntei-me ao corpo momentos antes do nascimento. Minha impressão, após o nascimento, foi a de que a palmada que o doutor me aplicou não era necessária. Fiquei indignado. Eu sabia que o médico estava com uma bruta ressaca.
(...) parecia-me que os médicos não percebiam que eu estava consciente e me tratavam como um não-ser, mera coisa ou objeto.
Observe o leitor este outro depoimento: A experiência no canal foi a mais vívida para mim. Eu sentia a tepidez do útero e as contrações musculares que me forçavam a descer.
Estava experimentando esse movimento para baixo quando explodiu aquela luz intensa, agoniada-mente brilhante, e meu rosto todo se contraiu. Percebia vagamente alguns dos pensamentos dos médicos e das enfermeiras, e seus sentimentos. Não era meu presente ego que aceitava essas idéias, porque eu achava que, como bebê, não era suposto estar fazendo aquilo. O caso é que eu estava mesmo telepaticamente consciente das emoções deles.
Declara outro que as pessoas à sua volta o estavam manipulando sem nenhum sentimento de amor, “com grande frieza emocional”. E prossegue: Eu tinha consciência dos sentimentos deles. Estavam fazendo o trabalho que lhes competia e eram bem-intencionados. Só que nem se davam conta da sua própria insensibilidade e do quanto eu era capaz de entender tudo aquilo.
Uma das pessoas percebe que os pais estavam fazendo o possível para aceitá-la, compensando-a pela relutância que haviam demonstrado em tornarem-se pais dela, mas o bebê “sabia da verdade”, mesmo ouvindo-os falarem de futuros planos que tinham a respeito dele.
Eu tinha a inteligência de um adulto (Depõe outro).
(...) uma mulher me apanha bruscamente. Sinto-a zangada e vejo que não gosta de mim. Parece que, de alguma forma, eu a ofendera.
Minha mãe também está cansada demais e dolorida para demonstrar qualquer interesse por mim. A mulher sai comigo nos braços. E como se eu fosse um patife. Lágrimas genuínas escorriam de meus olhos, enquanto ela me levava. Na verdade eu queria voltar para aquele espaço luminoso de onde viera.
Esse, aliás, não é o único que, se pudesse, teria voltado prontamente para o “lugar de onde veio”, ou, sequer, teria saído de lá.
(...) como as pessoas são tolas por não saberem o que os bebês desejam (declara outro).
(...) senti-me desapontado ao observar que a alegria que eu experimentava ao nascer não encontrava eco aqui fora. Eu estava lúcido e alerta, mas as pessoas que me cercavam não sabiam disso.
Eu não estava gostando nada da ideia de ser espremido para dentro daquele pequeno corpo, mas me conformei e disse a mim mesmo: ‘Bem, vamos lá!’, e mergulhei como quem pula na água fria.
(...) tive vontade de rir deles, não sei porquê. Acho que foi porque eles não sabiam realmente quem eu era e nada sabiam acerca do que é nascer.
(...) minha avó era torpe. Primeiro pensei que se tratasse de uma enfermeira, mas logo percebi que ela era minha avó.
Poderíamos multiplicar depoimentos como esses, não fosse o risco de torná-los repetitivos demais. Acho, porém, que alinhamos o suficiente para nos convencer de que, em lugar de um “inocente” e obtuso bebê, incapaz de pensar, sentir e entender o que se passa a sua volta, temos, ao contrário, um espírito amadurecido, dotado da estranha faculdade de captar sutilezas como pensamentos e sentimentos que nem chegam a ser expressos ou formulados.
Isto merece e precisa de comentário à parte.
Paz a todos...
Um comentário:
Soninha, tenho te acompanhado sempre que posso, e seus temas são pertinentes e precisos. A questão do nascer e morrer não poderia estar mais claro. Qdo nascemos, morremos. Qdo morremos, nascemos. Nascer é um ato difícil e que requer muita coragem. Obrigado e um grande beijo, Moran
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